Poesia Portuguesa

Poemas em Português



Poema Carta a Manoel

Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos Ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate, alli, cardiaco, apressado,
O Tic-tac do relogio do fogão)…
Bons tempos, Manoel, esses que já lá vão!
Isto, tu sabes? faz vontade de chorar.
E, pela noite em claro, eu fico-me a scismar,
Triste, ao clarão da lamparina que desmaia,
Na existencia que tive este verão na praia,
Quando, mal na amplidão, vinha arraiando a aurora,
Ia por esse mar de Jezus-Christo fóra,
No barco á vela do moreno Gabriel!
Vejo passar de negro, envoltas n’um burel,
Quantos sonhos, meu Deus! quantas recordações!
Phantasmas do passado! encantadas vizões!
Que, embora estejam lá, no seu paiz distante,
Oiço-as fallar na minha alcova de estudante.

Minhas vizões! entrae, entrae, não tenhaes medo!

Ó Rio Doce! tunnel d’agoa e de arvoredo!
Por onde Anto vogava em o wagon d’um bote…
E, ao sol do meio dia, os banhos em pelote,
Quando iamos nadar, á Ponte de Tavares!
Tudo se foi! Espuma em flocos pelos ares!
Tudo se foi…

Hoje, mais nada tenho que esta
Vida claustral, bacharelatica, funesta,
N’uma cidade assim, cheirando, essa indecente!
Por toda a parte, desde a Alta á Baixa, a lente!
Bem me dizias tu, como que adivinhando
O que isto para mim seria, Amigo, quando
O anno passado, vim contra tua vontade
Matricular-me, ahi, n’essa Universidade:
“Anto não vás…” dizias tu. Eu, fraco, vim.
Mas certamente, é natural, não chego ao fim.
Ah quanto fôra bem melhor a formatura,
Na Escola-Livre da Natureza, Mãe pura!
Que optimas prelecções as prelecções modernas,
Cheias de observação e verdades eternas,
Que faz diariamente o Proff. Oceano!
Já tinha dado todo o Coraçao Humano,
Manoel! faltava um anno só para acabar
Meu curso de Psychologia com o Mar.
Porque troquei pela Coimbra inutil, vã,
Essa Escola sem par, cujo reitor é Pan?
Talvez… preguiça, eu sei… A Cabra é a cotovia:
As aulas, lá, começam mal aponta o dia!

Que tedio o meu, Manoel! Antes de vir, gostava.
Era a distancia, o Além, que me impressionava:
Tinha a poezia do sol-por, d’uma esperança.
Mas, mal cheguei (que espanto! eu era uma criança…)
Tudo rolou no solo! A Tasca das Camellas
Para mim, era um sonho, o céu cheio de estrellas:
Nossa Senhora a dar de ceiar aos estudantes
Por 6 e 5! Mas ah! foi-se a Virgem d’antes,
Tia Camella… só ficou a camelice.

Comtudo, em meio d’esta futil coimbrice,
Que lindas coisas a lendaria Coimbra encerra!
Que paysagera lunar que é a mais doce da Terra!
Que extraordinarias e medievas raparigas!
E o rio e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas?
As cantigas! Que encanto! Uma diz-te respeito,
Manoel; é um sonho, é um beijo, é um amor-perfeito
Onde o luar gelou: “Manoel! tão lindas moças!
Manoel! tão lindas são…”

Que pena que não ouças!

Quero mostrar-te Coimbra. Has-de gostar. Partamos.
Dá-me o teu braço e vem d’ahi commigo, vamos!

Olha… São os Geraes, no intervallo das aulas.
Bateu o quarto. Ve! Vem sahindo das jaulas
Os estudantes, sob o olhar pardo dos lentes:
Ao vel-os, quem dirá que são os descendentes
Dos navegantes do seculo XVI?
Curvam a espinha, como os aulicos aos reis!
E magros! tristes! de cabeça derreiada!
Ah! Como hão-de, amanhã, pegarem uma espada!
– E os doutores? – Ahi, os tens graves, á porta.
Porque te ris? Olhal-os tanto… Que te importa?
Ha duas excepções: o mais, são todos um,
Quaresma d’alma, sexta-feira de jejum…
Não quero entanto, meu Manoel, que vás embora
Sem ver aquelle amor que esta alma adora, adora:
Olha, acolá. Gigante, altivo como um cedro,
Olhando para mim com ternura: é o meu Pedro
Penedo!
Ó Pedro da minh’alma! meu amigo!
Que feliz sou, bom velho, em estudar comtigo!
Mal diria eu em pequenito, quando a ama
Para eu me callar, vinha fazer-me susto á cama
Por ti chamava: Pedro! e eu socegava logo,
Que eras tu o Papão! A ama, de olhos em fogo,
Imitava-te o andar, que não era bem de homem…
Eu tinha birras? – Ahi vem o lobishomem!
Dizia ella. – Bate á porta! Truz! truz! truz!
E tu entravas, Pedro, eu via! Horror! Jezus!

Meu velho Pedro! meu phantasma de criança!
Quero-te bem, tanto que tenho na lembrança,
Quando morreres, Pedro! (o Pedro nunca morre)
Hei-de pegar em ti, encher de alcool a Torre
Com todo o meu esmero e, zás! metter-te dentro!
Pedro! assim ficas enfrascado, ao alto e ao centro,
E eternamente, para espanto de vindoiros:
No rotulo porei: Alli-Bed, Rei dos Moiros.

Mas… toca a recolher. Dou uma falta: embora!
Saiamos…
Manoel, vamos por ahi fóra
Lavar a alma, furtar beijos, colher flores,
Por esses lindos, deliciozos arredores,
Que vistos uma vez, ah! não se esquecem mais:
Torres, Condeixa, Santo Antonio de Olivaes,
Lorvão, Sernache, Nazareth, Tentugal, Cellas!
Sitios sem par! Onde ha paysagens como aquellas?
Santos Logares, onde jaz meu coração!
Cada um é para mim uma recordação…

Condeixa?

Vamos ao arraial que, alli, ha.
– Sol, poeira, tanta gente! – É o mesmo, vamos lá!

Olha! Estudantes, dando o braço ás raparigas,
Caras de leite, olhos de luar, tranças d’estrigas;
Arrancam-lhes do seio arfando as violetas,
Aos hombros d’ellas poem suas capas pretas:
Que deliciosos estudantes que ellas ficam!
Velhos aldeões que tudo vêm, mas não implicam,
Porque, em summa, que mal pode fazer um beijo,
Vem até nós, sorrindo, aproveitando o ensejo,
Com o chapéu na mão, simples e bons e honrados:
Vêm consultar-nos, porque “somos advogados
E sabemos das leis…” O que devem fazer
Ahi, n’uma questão, n’uma questão qualquer
D’agoas com um vizinho: é tal a cheia d’ellas
Que estraga as plantações! – Que hão-de fazer? Bebel-as!
E vão-se, assim, jurando aviar nossos conselhos…
Ai de vós! Ai das vossas agoas, pobres velhos!

Tentugal?

Que manhã! E não quereres vir…
Pega nas luvas, no chapéu. Vamos partir.
É logo alli: quinze kilometros, é perto.
Espera-nos o Toy, extasia-se o Alberto,
Pela janella d’esse mundo amplo e rasgado!
Que lindo dia! ó sol, obrigado, obrigado!
Paysagem outomnal, alegra-te tambem!
Hoje, não quero ver ninguem triste, ninguem!
Outomno, vá! melancholia, faze tregoas!
Peço paz, rendo-me! Haja paz, n’estas trez legoas!
Choupos, então? Que é isso? erguei a fronte, vamos!
Ó verdilhões, ide cantar-lhes sobre os ramos!
Aves por folhas! Animae-os! animae-os!
Applica-lhes, ó sol! uma ducha de raios!
Almas tristes e sós (não é mais triste a minha!)
Aqui estaes, meu Deus! desde a aurora á tardinha.
O vento leva-vos a folha, a pelle; o vento
Leva-vos o orvalho, a agoa, o prezigo, o sustento!
E dobra-vos ao chão, faz-vos tossir, coitados!
Estaes aqui, estaes promptos, amortalhados…
Fazeis lembrar-me, assim, postos n’estes logares,
Uma colonia de phtysicos, a ares!…
Não vos verei, talvez, quando voltar; comtudo
Ver-vos-ei, La, um dia, onde se encontra tudo:
A alma dos choupos, como a do homem, sobe aos céus…
Ó choupos, até lá… Adeus! adeus! adeus!

Foi-se a paysagem triste: agora, são collinas;
Ve-se curraes, eiras, crianças pequeninas,
Bois a pastar ao longe, aves dizendo missa
Á natureza e o sol a semear Justiça!
Vão pela estrada aleijadinhos de moletas;
Atiro-lhes vintens: vêm pegar-lhes as netas.
Mas o trem voa á desfilada… – Olá! arreda!
(Ia-o apanhando: foi por um fio de seda…)
E assim n’este galope, a charrette rodando,
Já de Tentugal se vae quazi approximando:
S. João do Campo já nos fica muito atraz…
Assim, Malhado! puxa! Bravo, meu rapaz!
Que estamos quasi lá! mexe-me essas ancas!
Emfim!

Tentugal toda a rir de cazas brancas!

A linda aldeia! Venho cá todos os mezes
E contrariado vou de todas essas vezes.
Venho ao convento vizitar a linda freira,
Nunca lhe fallo: talvez, hoje, a vez primeira…
Vou lá comprar um pastellinho, que eu bem sei
Que elle trará dentro um bilhete, isto sonhei:
Assim o pastellinho, ó ventura sonhada!
Tem de recheio o coração da minha amada.
Abro o enveloppe ideal. Vamos a ver… – Traz? – Não!

Regresso a Coimbra só com o meu coração.


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Poema Carta a Manoel - António Nobre
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