Poesia Portuguesa

Poemas em Português



Poema Fragmento Terceiro

I

Campos de ira, tão vasto sentimento
vos afasta. íris morta! Os actos radicais
constroem, em projeto, um frágil
universo – a tinta, o espaço óptico.
Descansam os sentidos sobre pródigas
defesas: os filtros turvos, as precauções
na sua cura. Os nervos tersos
da análise da vida e da matéria.

II

Desviam-se dos livros. Hoje escreve
contra a morte dos olhos, a existência
passível de leitura. Ineptos, os sons
perdem-se na encosta. o vento fere
ainda? Inscrito
na área da cabeça, é esse rastro
ainda vivo. Domino a sua queda, os seus poderes
punitivos, a sua força hereditária.

III

Persistir no imóvel. Preencher
os anos que nos moldam
no vigor da fibra, no duro movimento
interior – a que destino, a que imaturo
ritmo, sem preço? Pois é o caro
prémio deste dorso
de o cumprir, pensar, até ao fim.
Ou de saber adestrá-lo até que,
exausto, só impulso
vigore – a morte lida
num próximo sentido, ainda vivo.

IV

Como contacto único, a distância
entre as fontes. Solidários, os campos
de visão? Fonte comum, brilho, sintomas
de amizade? Tudo o que, fora,
comovemos. O ar, as linhas variáveis
do horizonte, comuns,
reflectidas. Assim crescemos,
paisagens de uma lógica imprecisa.

V

Uma lógica preside a esta noite.
Expulsa as sílabas, destrói a ilusão
dos livros, é táctil e real. Assisto à
sua composição, perdida a luz
e os reflexos: o breve ritual
da desfocagem, o movimento científico
do sol; os crânios submissos
entrando na penumbra e no exílio.

VI

Nos dias revelados, na posse do que dita
o pó e as vigílias, nessa lenta
profusão de imagens e de rostos
traídos, roídos de beleza
-um dorso descomposto, deitado
sob a treva. E a cabeça
inclinada
cada vez mais no seu lençol.

VII

Ordem exterior, sentidos renitentes
à aniquilação, ao extermínio. O problema
de uma moral primeira, de sinais.
É o lugar de um movimento, de imutável
fidelidade nos limites.
Suporta-se o silêncio. A crosta
do imóvel. Mas quem exerce
este poder primário e punitivo?

VIII

Descemos para o mar. A economia
dos gestos, da matéria perecível
é árdua e inútil. Os deuses cegos
perderam o seu brilho, sobre as águas.
Rodeiam
a pupila, cansada pelo sol, enfraquecida
pela acção dos nervos e das vagas. Reproduzem
imagens lógicas, construções sólidas
e rígidas. Todo o rigor possível
destas praias.

IX

Mas nada aqui, embora estável,
nos redime do fim e do excesso,
viáveis à demência.
Exíguo, o pensamento constrói
paisagens sóbrias: um rosto
magro, insociável, corrompido
por hábitos marítimos. A sombra
intensa e dura. A exímia
e nítida cegueira.

X

Quem poderá deter a extrema
organização: os nervos dispersivos, os gestos
do saber, os tensos soros
despendidos – a perfeição perdida?
Domina-se o crânio, a pobreza do
espaço, na mais áspera mestria. Junto
aos pulmões descobrem: as formações etílicas,
o pó, a ressonância. Ainda quentes,
os órgãos de um ser vivo.


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Poema Fragmento Terceiro - Nuno Guimarães
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