Poesia Portuguesa

Poemas em Português



Poema Irmão

Eu não fiz uma revolução.
Mas me fiz irmão de todas as revoluções.
Eu fiquei irmão de muitas coisas no mundo.
Irmão de uma certa camisa.
Uma certa camisa que era de um gesto de céu
e com certo carinho me vestia, como se me
vestisse de árvore e de nuvens.
Eu fiquei irmão de uma vaca, como se ela
também sonhasse. Fiquei irmão de um vira-lata
com o brio com que ele também me abraçava.
Fiquei irmão de um riacho, que é nome
de rio pequeno, um pequeno que cabe
todo dentro de mim, me falando,
me beijando, me lambendo, me lembrando.
Brincava e me envolvia, certos dias eu
girava em torno do redemoinho do cachorro
e do riacho e da vaca, sem às vezes saber
se estava beijando o riacho, o cachorro
ou a vaca, com um grande céu
me entornando, com um grande céu
com a vaca no lombo e com o cão,
com o riacho rindo de nós todos.
Eu fiquei irmão de livros, de gentes.
Eu fiquei irmão de uma certa montanha.
Irmão de muitos rios.
E fiquei irmão de uma certa idéia,
e tive sorte, não me assassinaram
como a milhares de meus irmãos,
e provei a mim mesmo
a minha fidelidade.
Fiquei irmão de muito cidadão de nome certo.
Fiquei irmão de uma certa bebida,
uma certa bebida que se chama ceva orvalhada.
Um ritual de estima: amigos, futebol, poesia,
minha doce donzela de vestido amarelo
e mais as outras tantas donzelas
de vermelho, grená, cinza, branquelo,
os vestidos mais belos e os mais singelos!
Eu gosto de mim, de meu porte nem sei,
de minha doce e embalante imaginação,
de minha frágil e destemida poesia.

A verdade é que, um grito na minha boca
é igual a um grito na boca da noite?
O que é uma palavra descansada?
Haverá sempre no mundo as palavras
descansadas ou haverá ainda outras,

as que não se cansam nunca, as mortas?
As palavras morrem ou são esquecidas?
As palavras que estão no dicionário, elas
estão recuperadas, estão salvas ou apenas
prisioneiras; quem será que tem interesse

na prisão das palavras? As palavras simples
navegarão num mundo complicado com a verve
de sempre ou perderão a compostura?
Haverá, no meio delas, as tontas, as virgens,
as palavras desavergonhadas, as vesgas?

Que pode acontecer com as palavras ocas,
as que estiveram num desastre ou que vivem
nos becos ou nos lupanares imundos, ou as
que esqueceram suas razões, como se bêbadas
e depois da noite sufocante tornaram-se ocas?

Haverá mesmo palavra que tenha em si a fuga
dos sentidos? Haverá, entre elas, uma apenas
que resguardando-se do tédio, pôde ministrar
no silêncio sua dor e sua mentira, para sorrir
na hora H, quando todos estiverem apagados?

As palavras estão no mundo representando
o seu papel, elas estão acovardadas ou não?
Qual é a palavra mais sensata para quando
houver o desastre de avião e tudo ficar em segredo
por falta da caixa preta? Em verdade, existe, sim,

a sensatez das palavras; (vejam, a palavra infinito!.
Que tola!) como se pode agir quando aparecer
na cena um homem sensato, se não temos ordem
de aplicar a palavra exata? Pêsames, mesmo
a palavra exata? Que palavra mais fina devo dizer

ao morto antes dele morrer? que palavra mais crua
devo dizer ao vivo antes dele me mandar à Merda?
Um trem-de-ferro chegou, amigo, na estação Soledade.
Que foi que trazia nos seus vagões, o trem de Soledade?
Trazia nos seus vagões os sonetos da “Geração de 1889”

Ninguém pra receber na estação noturna de Soledade!
As palavras ficaram bem arrumadas, na boquinha, na boquinha!
As palavras arrumadas em nosso Dom Casmurro soneto!
Os vagões estavam resplandecentes! Os vagões de Pêsames!
As palavras vagas nos vagões virgens nos manequins vesgos!


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Poema Irmão - José Godoy Garcia
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